quinta-feira, 8 de maio de 2014

Crônica do Terapeuta

  Lucia entrou no consultório batendo as portas, dispensou os cumprimentos educados da secretária e ignorou os demais pacientes. Contrariamente, seu terapeuta recebeu-a com um sorriso conformado:
  - Surpreende-me! Como você está?
  - Caso estivesse bem, lhe traria flores ou chocolates, ou nem ao menos me daria ao trabalho de vir.
  - O que lhe perturba?
  - Estou louca, doutor! Louca! - bateu as mãos na mesa.
  - Isto não está anotado nos meus diagnósticos. - ele analisou calmamente um bloco repleto de informações apenas da mulher.
  - Então anote! Ora, doutor! Não é nem capaz  de anotar o mais óbvio! Por que ainda me consulto com o senhor?
  - Mas, Lucia...
  - Deixe-me falar!
  - Pois que fale. - suspirou cansado daquela situação que se repetia constantemente.
  - O que digo não tem sentido algum, distraio-me com o que há de mais desprezível, penso sempre nas mesmas situações e até sonho com elas, doutor! - deixou-se cair na poltrona macia, frustrada. - Além disso, estou apaixonada por um estranho.
  - É apenas uma paixão platônica. Não é a primeira vez que acontece.
  - Mas é claro que é! Dessa vez é diferente! - Lucia cruzou os braços.
  - Sempre é diferente, mas sempre é igual.
  - É diferente de verdade, doutor. Eu o conheci antes.
  - Então como pode ser um estranho?
  - Exatamente! Como posso amá-lo assim? - ela respirou fundo e pegou alguns doces que haviam no pote sobre a mesa, mastigando-os nervosamente.
  - Ama-o pelo que conheceu.
  - Mas nem ao menos me recordo! Recordo-me apenas de sua alma...
  - Alma?
  - Sim, eu a vi claramente! Inacreditável, não é? - ela sentou-se de forma mais ereta e sorria, os lábios brilhando com o açúcar dos doces.
  - Lucia, você tomou seus remédios? - o médico mexeu em sua gaveta, preparando-lhe as doses.
  - Já tomei, e pare de me oferecer remédios! De nada ajudam. - ela ergueu-se, recuperando sua irritação  e jogando a dose no carpete.
  - Não minta para mim.
  - Como quiser: não tomei nada. Mas também não irei me medicar!
  - E por quê?
  - Porque sou louca e loucos não obedecem ordens.
  O terapeuta respirou fundo, bebeu um gole de seu café e prosseguiu, já acostumado com a ladainha da paciente.
  - Lucia, como posso trata-la se você não toma os medicamentos que receito? Se nem ao menos procura se acalmar?
  - Porque você não me ouve, doutor!
  - Como não?
  - Sou louca! Tão louca que o senhor não reparou nem no pior!
  - E o que é?
  - Todo este tempo, eu estive falando sozinha.

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